quinta-feira, junho 30, 2005

precípuo

língua: português
def.: do Lat. praecipuu; adj., principal; essencial; s. m., Jur., vantagem que um co-herdeiro tem por disposição testamentária ou legal; bens que se podem tirar da terça para um co-herdeiro, antes que ela se divida por todos os outros.
imagem: a história aconteceu pelo aniversário do avô António... Lá para o fim da tarde, em amena cavaqueira e a apreciar a brisa de verão, ouviram-se uns gritos lacinantes vindos do sotão. Em sobressalto, galgaram a escadaria para encontrar o pequeno de cinco anos a berrar pela mãe e agarrado ao dito apêndice da diferença... chamou-se o médico e fez-se o rescaldo: a prima, dois anos mais velha, tinha convencido o puto a mijar do topo da janela. Esta, de guilhotina, mal presa, soltou-se, quase provocando uma desgraça irreparável... ou, como bem colocou o tio Afonso, reputado chefe da secção, dirigindo-se ao pai do petiz e não sem uma ponta de ironia no bigode: "O precípuo é que apenas foi o prepúcio . Agora tens um filho judeu, estás com sorte, deve ter sucesso na banca..."

sábado, junho 25, 2005

pateta

língua: português
def.: de pato s. 2 gén., pessoa maluca; idiota; tola; palerma.
imagem: andou a manhã toda a remoer aquilo pensando no pior que lhe poderia acontecer. O melhor era fugir de casa, talvez. Para longe, à socapa. Quando acabou de ponderar o assunto ouviu a chave na porta. Aí decidiu-se (não podia escapar) e confessou a desgraça: seu pateta! foi só isso?, o olhar compreensivo da mãe restabeleceu-lhe a paz de espírito... até aos conselhos do pai à noite e ao telefonema da avó no dia seguinte...

segunda-feira, junho 20, 2005

sentina

língua: português
def.: do Lat. sentina; s. f., a parte mais baixa do interior do navio, onde as águas se juntam e se corrompem; lugar imundo; latrina.
imagem: ouviu e engoliu em seco. Uma, duas, três vezes. O "Oculinhos" (cara de fuínha e chefe de repartição) explodia na sua frente, cuspindo pragas de gafanhotos em todas as direcções, possesso. Mais tarde até se admirou a sua reacção, como se conteve para não esmagar aquele asco de coisa contra a parede. Dirigiu-se à secretária e escreveu a demissão enquanto o homem se virou à procura de audiência. Meteu-lha à papo-seco nas mãos e deu o vira, deixando-o a espumar. Já estava farto daquilo e ao chegar à rua até o ar lhe pareceu outro, sem o peso e peçonha daquela gigantesca sentina onde tinha perdido dois anos da sua vida. Aí teve a Ideia. "Porque, vejamos", discorreu para os botões, "é apenas a justa compensação". Dois meses depois, quando a sua memória era apenas mais uma mancha nas paredes, fez explodir os tubos das casas de banho, inundando o edício com a cloaca que se acumalava dentro, transformando-o numa gigantesca metáfora da Instituição. Ou pelo menos foi essa a teoria com que safou no tribunal...

sexta-feira, junho 17, 2005

pundonor

língua: português
def.: do Cast. pundonor, contr. de punto de honor, ponto de honra; s. m., sentimento de dignidade, de honra; brio; decoro; honra; denodo; cavalheirismo.
imagem: cruzou toda a audiência em silêncio, cabeça erguida. Levantou-se quando lho pediram, sentou-se quando lho ordenaram. No fim, 15 anos. Nem tugiu nem mugiu. Saíu da sala arrastando um silêncio embaraçado atrás de si, pesado da insignificância de quem o julgou. Não apareceu ninguém da aldeia. Habituados a uma justiça delegada pela agrura dos montes e o sangue, estranhavam aquela ingerência vinda de fora, curvavando-se a ela como à chuva que bate com a nortada. A rapariga, manchada no seu pundonor, tinha-se atirado da fraga. O rapaz, apanhado pelo pai, jazeu no adro, cabeça rachada pelo velho. Quando os da guarda o vieram buscar acabou o queijo, fechou a casa e foi. Nunca tinha sido homem de grandes palavras...

batoque

língua: português
def.: s. m., boca de pipa; rolha que a tapa; fam., pessoa atarracada e gorda; sinal circular na orelha das reses; prov., pequeno pau de pontas aguçadas utilizado num jogo de crianças.
imagem: o fulano entrou na oficina a meio da tarde, deixando o Packard a ocupar a entrada da quelha que lhe dava acesso. Não pude deixar de reparar na ironia das circunstâncias: foi quando o mestre António fechava o pipo, encaixando o batoque na abertura que entrou aquela corpulência suada (era pico de Agosto) pelo portão adentro. Os putos, do lado de fora, tinham deixado o futebol de bolas de trapos para admirar a pintura negro reluzente da viatura, os cromados impecáveis daquele aparecimento inusitado. Enquanto o homem se escorria para um lenço de linho, não pude deixar de pensar naquele cruzamento de necessidade (que mais traria ali tal personalidade) entre quem manda e quem faz. E de novo, como muitas vezes, o comentário final à escala social foi dada pelo filósofo de serviço: o cão de caça do mestre que aproveitou para ir marcar território nos irreprensíveis pneus americanos do Doutor...

quarta-feira, junho 15, 2005

esgar

língua: português
def.: s. m., careta de escárnio; trejeito de rosto; momice.
imagem: ... dizia o relatório, e passo a citar,
António Francisco da Fonseca, 65 anos, filiado, ex-presidente da Colectividade saíu de sua casa as 7.00 da manhã, apanhando o expresso das 7.45 para a capital de Distrito. Levou consigo dois jerrycans cheios de gasolina. Estes foram comprados no dia anterior na estação de serviço da terra. Chegou defronte da Repartição a um quarto para as dez da manhã, tendo parado antes no café para aligeirar um copo de tinto. O empregado do balcão disse que era um homem de poucas falas e que até estranhou, porque não é habitual pedirem tinto aquela hora da manhã. Duas testemunhas oculares, uma das quais chamaria mais tarde os bombeiros sapadores, viram-no entrar no edifício às dez para as dez. E dez minutos mais tarde começou a sair grande fumarada das janelas do primeiro andar. O supracitado indíviduo foi preso quando chegou a polícia, estando de pé, calmamente a observar o incêndio. Segundo os agentes, foi denunciado pelo esgar de satisfação que ostentava. Ainda não se apurou o motivo do delito mas presume-se que esteja relacionado com um ajuste de terras que a Repartição em questão demorava em regular.

quinta-feira, junho 09, 2005

ímpio

língua: português
def.: do Lat. impiu; adj. e s. m., que ou o que não tem religião; ateu; sem piedade; desumano; cruel.
imagem: Quem lhe deu a ideia foi a Ti Graça, quando o apanhou pelas couves adentro a armar os costilos aos pardais. A palavra caíu-lhe no goto, com sabor de orgulhosa reprovação, e grudou-se-lhe na mente. Quando desceu ao povo, do cimo da Serra, no ano a seguir, e chamou pelo cão, um arraçado serra-da-estrela, pelo curto, coleira de puas, a primeira velha que o ouviu benzeu-se logo. E foi a reacção repetida entre o beatedo ao longo desse dia. O puto, regojizava por dentro, com aquele efeito. Hisurto, orfão, ganhava a vida de pastor, um bicho no meio da serra. E foi assim que passou o verão, a atiçar o cão aos rafeiros do povo, gritando "Óh Ímpio, segarra, segarra".

segunda-feira, junho 06, 2005

torpor

língua: português
def.: do Lat. torpore; s. m., estado de inactividade física e mental que não chega ao sono e que caracteriza certas doenças; entorpecimento; indiferença ou inércia moral.
imagem: os três velhos alinhavam-se no torpor do meio da tarde sobre o banco corrido da esplanada do café, encostados à parede de pedra. Davam ao sol e às moscas que atazavam os cães da rua a mesma indiferença, protegidos pelo braço estendido da pereira do Martins. No raro movimento da rua (os putos, esses, tinham fugido para ir tomar banho ao rio) encontravam motivo para esparsos comentários sobre os nadas da vida da aldeia. Não admira que tenham sido os primeiros a ver a saída intempestiva da Violeta da casa do Belermino, seguida do marido furioso e a mandar chispas. Mais tarde, na sala do tribunal, haviam de arrastar a história nas palavras lentas que foram tolhendo nesses anos de exposição ao astro rei e, ao voltarem, alinharam por ali de novo, a curtir as peles rijas e à espera da morte.

sexta-feira, junho 03, 2005

herege

língua: português
def.: do Prov. eretge Lat. haereticu Gr. hairetikós, que escolhe adj. e s. 2 gén., que ou aquele que professa uma doutrina contrária aos dogmas da Igreja Católica; pop., ateu; ímpio; irreligioso.
imagem: o Paulinho ficou comunista depois de se desiludir com o Padre da terra. O cisma deu naquilo. Não que tivesse feito uma selecção cuidada, antes deu com aquilo à frente, atropelado pelos panfletos deixados no sotão pelo tio (um verdadeiro revolucionário, deu o salto em 58). Aplicou-lhe os rudimentos da leitura (fruto florescido à força das canadas da D. Efigénia) e foi a luz. Isto é, pariu um confuso cacho de ideias que deixou medrar, como silvedo, pela alma adentro. E depois, quando se viu atado em tal confusão, deitou fogo à Igreja e à Junta na noite da festa da Nossa Senhora da Conceição.

quinta-feira, junho 02, 2005

taberneiro

língua: português
def.: do Lat. tabernariu s. m., dono de taberna; o que vende em taberna; fig., homem pouco limpo; grosseiro.
imagem:


há coisas para as quais não há paciência alguma. E muitas delas, infelizmente, temos de as aturar. Daí que haja tanto ressentimento por aí... Vai-nos corroendo lentamente, por dentro, num rilhar de dentes. E um dia


"Sei que o gajo não faz por mal. O mal é ele existir", dizia à mesa do café para os amigos. "Está uma pessoa calmamente a trabalhar e, de repente, lá está, aqueles modos de taberneiro, a falar alto ao telefone como se estivesse a mandar a mulher entregar dois copos de vinho na mesa do canto em dia de jogo da taça. Porra pá, um tipo até salta dos gonzos! Duas ou três vezes um tipo respira fundo, levanta-se e pede que fale mais baixo, ah sim pois, desculpe lá mas logo a seguir readquire o tom de voz e está tudo estragado. Mas eu faço-lhe a folha. Já telefonei pró meu tio e vai embarcado para África. Que evangelize lá o pessoal que ele tem é jeito para escuteiro."

quarta-feira, junho 01, 2005

banzé

língua: português
def.: do Jap. banzai, viva! s. m., pop., festa ruidosa; barulho, chinfrim.
imagem: foi por altura da Senhora da Conceição, um estralejar de foguetes que nunca visto, pago pelos principais da terra. Tudo porque os Marques e os Oliveiras não se entendiam. Até contrataram dois fogueteiros diferentes, um a mandar do cimo do povo, o outro do adro. Toda a tarde foi um banzé a ver quem deitava o fogo mais barulhento e mais vistoso. Tudo acabou quando o do adro foi sabotado pelo Fonseca das Quintinhas que, subornado pelo Afonso Marques com dois copos de tinto, deitou um cigarro no arsenal do homem. Aquilo arrebentou tudo, derribando metade do muro que ladeava a Igreja com a explosão e pondo o Fonseca de contas com o Padre nas duas semanas seguintes: a paga do tinto foi a reconstrução do muro sob o olhar severo do da batina (e, dando o vento para aí, o concerto de duas empenas na casa da paróquia).