sábado, janeiro 28, 2006

naveta

língua: português
def.: de nave; s. f., pequena nau; recipiente com a forma de barco, em que, nas festas de igreja, se serve o incenso para os turíbulos; lançadeira com que se faz certa renda; lançadeira de máquina de costura; instrumento com que o tecelão faz correr o fio sobre o tear; Bot., carena; ant., trajecto, caminhada.
imagem: o Quinzinho era um rapaz atinado. Certinho. Daqueles que dá nervos de tão rectos que são. Enfim, um belo de um papa-hóstias. Diz-se que quem sai aos seus não degenera e se do pai não havia muitas simpatias, excepto num selecto circulo de beatas e beatos, o filho, carregando a herança, sofria como um mártir a escolha inconsciente. Enquanto os rapazes saltavam o muro, depois da catequese, para ir às cerejas ou aos ninhos, antes de entrarem, joelhos sujos e cara angelical na celebração da eucaristia, o Quinzinho enfiava-se no missal, lendo atentamente a escritura e murchando por falta do estrume e do sol que alimenta a infância. A naveta que puxava aquela vida ia assim a passo certo e direito, forjando uma manta de linhas rectas e insípidas, contrastando com os tapetes irregulares e coloridos do resto da companhia. Na festa da Padroeira o tecelão daquela manta deve ter finalmente adormecido ou bebido um pouco a mais, metendo a Joana da Ti Francesa no caminho do rapaz. Na segunda-feira seguinte o mundo voltou a entrar nos eixos, redemido do pecado de andar a murchar um rapaz sob o peso das escrituras.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

balofo

língua: português
def.: adj., fofo; volumoso mas sem consistência; impostor.
imagem: o sujeito era, mais do que tudo, grande. Um grande e amorfo batoque, ostentando na em toda aquela gigantesca superfície, o peso de uma autoridade dada pela sombra do padrinho. Esse outro era um fulano magro, aí dos nos seus 60, raramente visto, passando o tempo na capital. Este, pelo contrário, avançava pelo adro da Igreja adentro ao domingo, num passo lento e batráquio, espoletando ao passar sorrisos e vénias delambidas de uma untuosidade degradante. No dia em que o puto da velha da Mó de Cima deixou os berlindes esquecidos nos degraus, provocando-lhe a morte por contacto directo com a indiferença gélida do granito de Janeiro, assistiu-se (diz quem lá estava), a um instantâneo deflacionamento da personagem, como um belo bolo balofo que tivesse sido tirado cedo de mais do forno pelas vésperas de Páscoa.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

inquietude

língua: português
def.: lat inquietudine; s. f. inquietação, estado de inquieto, falta de sossego, excitação, nervosismo, apoquentação, estado de inquietação relativamente ao que é, desejo de superação, desassossego
imagem: mastigava o pão, arrancando-o em pequenos pedaços, lentamente, num sabor indefinivelmente amargurado, sentido-o avolumar-se algures embaixo com uma insatisfação escura de desconforto fisico. Os sons mínimos que bordejavam o caminho, um traçado que gerações de pés bateram pela mata, roçavam-lhe os nervos, eriçando-lhe ligeiramente os cabelos num nervosismo agonizante. O livro de apontamentos, testemunhando a comunicação com a indiferença das coisas materiais, assegurava uma certeza desmentida pelos factos. Quando desistiu e desceu à aldeia, deixando o resto do pão esfarelar-se na mão, entre os dedos cardidos e rugosos, o pequeno mar encrespado da sua inquietude avolumava-se a cada passo, amplificando-se enquanto se aproximava da casa do Chagas: os passos, amplificados por dentro, maciços, pesados e cada vez mais rápidos, desabaram numa corrida que desembocou no adro e estancou ainda antes de cruzar o terreiro. O temido carro preto já lá estava, dois fulanos encostados, gabardines negras, conversa carnívora. E foi naquele preciso momento, entre a acalmia momentânea da resignação e a visão instântanea das nuvens negras que aquilo pronunciava, que se lembrou das palavras marteladas na pressa da saída da manhã se fores à praça traz-me duas cebolas

sexta-feira, janeiro 06, 2006

arrufo

língua: português
def.: s. m., 1ª pess. sing. pres. ind. de arrufar; acto de arrufar; amuo.
imagem: o presidente da Junta e o pároco da aldeia viraram as costas na festa da padroeira e não voltaram a falar. "O assunto, fale quem sabe, diz respeito a dois garrafões de azeite e o caminho que devia descer pela quinta da paroquia, do lado do vale...", confidenciou o Bergo, com aquele olho meio enviesado, a remoer uma côdea de pão, "que lhe foi, e que lhe disse, foi para quem quis ouvir e deve ter casquinado valente nas orelhas do outro que se levantou, persignou e saíu da igreja a meio do sermão. Desde aí que as obras de restauro também pararam, o homem encravou as coisas lá na pedreira...". A côdea ia agora acompanhada de um queijo duro, cortado à navalha e guardado em seguida no bolso "... mas sabe, esses, é um arrufo de ricos, que os comam os bichos, é o que eu digo", e nisto meteu a trouxa ao ombro e alçou pela estrada fora.