segunda-feira, janeiro 31, 2005

maganão

língua: português
def.: fem. magana, adj. e s. m., que ou o que pratica maganices; figurão; brejeiro; brincalhão.
imagem: o cão recostou-se muito calmamente à soleira da porta. No calor do fim da tarde, enquanto o dono se entretinha a fatiar um presunto, acompanhando a boa broa e um copito, gostava de se deixar ficar a apreciar o panoram. Além, é claro, de umas tiras, que acabavam, cedo ou tarde, por deslizar para debaixo da mesa (sinal de cumplicidade de anos). Da ementa constava ainda, quase sempre, um pouco de pantomima. Da última vez tinha sido particularmente divertido:
Acto primeiro - o galo, verdadeiro maganão, a passear a crista de dono e senhor pelo pátio fora.
Acto segundo - o infante, vem da fonte, sorriso à banda, saco na mão.
Acto terceiro - apanhando o figurão em plena actividade de salamaleque, mete-lhe o saco na cabeça e é ver o pobre do bicho perder todas as veleidades e compostura. Começa então um percurso acelerado e errático, acabando com bruta cacholada no muro do poço.

(Verdade seja dita que nunca gostou muito daqueles ares a que o galináceo se dava, caíndo o espetáculo que nem ginjas entre duas mastigadelas de broa)

algeroz

língua: português
def.: do Ár. azzurub, canal; s. m., cano, caleira que dá escoamento às águas do telhado; parte saliente do telhado para desviar as águas da parede; cano que conduz a água da nora ao tanque.
imagem: quando instado a explicar como se tinha posto em tais apuros, pouco soube responder. Mercê do choque ou, mais provável, da valente carraspana que apanhou na despedida de solteiro. factus est (como gostava de sublinhar o campadre Abílio, valendo-se da única tirada que sabia em latim) que o rapaz foi encontrado pendurado no algeroz no dia do casamento, balouçando periclitantemente sobre o terraço e gritando que nem um desalmado. Refeito do susto acabou por se meter numa alhada pior, havendo de se tornar comum ouvi-lo dizer que o melhor teria sido ter lá ficado a balouçar-se ao invés do nó de gravata que deu...

quinta-feira, janeiro 27, 2005

fandango

língua: português
def.: do Cast. fandango, s. m., dança e música popular; adj., ordinário; ridículo.
imagem: nas reuniões sociais tinha de ser centro das atenções. Era dito e certo o pequeno remoque brejeiro, o toque fandangueiro com que se cobria. Conseguia assim, para o bem ou para o mal (porque também não se preocupava em medir o "onde" e o "com quem" estava) ser um jubilado sucesso (isto nas reuniões do Desportivo) ou uma odiosa presença (nas festas da Dona Naná, para onde apenas era convidado devido às relações que tinha e posto que ocupava). E o irónico era ele gostar dos dois efeitos. A esposa, essa, já se tinha resignado, refinando ao sublime a arte da declaração da enchaqueca.

quarta-feira, janeiro 26, 2005

lambada

língua: português
def.: s. f., paulada; descompostura; bofetada; tareia; sova.
imagem: "... vinha para aqui e, ao descer a Avenida, vi um jovem casal a discutir. A páginas tantas a rapariga, pareceu-me que despeitada, vai-se embora. O rapaz bate o pé, uma, duas vezes e segue atrás. Apanhei-os de novo no meu passo calmo, mais abaixo. Continuavam a discutir mas ele deve ter-lhe dito qualquer coisa mais desagradável porque ela pregou-lhe uma daquelas lambadas, rapaz, havias de ter visto. Até doeu só de olhar. Mas o moço não se desfez, olhou para ela muito calmamente e murmurou qualquer coisa mais civilizada porque a seguir ela desfez-se em lágrimas, acabando por se sumir nos braços dele. Bonito não?"
in Histórias de rua (no prelo)

lambareiro

língua: português
def.: adj., e. s. m., lambão; chocalheiro; cabo náutico antigamente empregado para trazer a âncora ao seu lugar; cada um dos turcos da amura.
imagem: o chefe Farias tinha um fraquinho por pasteis de Tentúgal. Bastava alguém mencionar o assunto que o homem quase se punha a salivar. Então se chegava lá o Lopes, que o conhecia de gingeira (fizeram serviço juntos, em Tancos) era certo e sabido que a conversa lá iria dar. É que o último tinha um prazer especial em pôr o amigo sonhar com os ditos pasteis para depois o frustar, desviando a conversa noutra qualquer direcção. Mas de vez em quando lá lhe trazia os ditos pasteis para regalo do lambareiro inspector.

terça-feira, janeiro 25, 2005

Deus

língua: português
def.: do Lat. Deus; s. m., ser supremo, infinito, perfeito, criador do Universo; divindade; causa primeira e fim de todas as coisas; cada uma das pessoas da trindade cristã; nas religiões politeístas é uma divindade de personificação masculina, superior aos homens, à qual se atribui uma influência especial, benéfica ou maléfica, nos destinos do Universo (grafado com inicial minúscula); fig., indivíduo que, pelas suas elevadas qualidades, se impõe à veneração dos homens; objecto de viva e profunda afeição e do mais fervoroso desejo (nas acepções figurativas grafa-se com inicial minúscula). nem à mão de - Padre: por forma nenhuma, apesar de todas as contradições.
imagem: os pais sairam cedo, para ir ao mercado. Últimos acertos antes do almoço, tinham convidado a prima de Alcobaça que devia chegar para a uma. O puto acordou nem uns 5 minutos mais tarde. Aquele "Dorme que nem um anjo, não vai haver problema" seria prenúncio de um dia inesquecível. Bem, o anjo levantou-se e deu com a casa vazia. Sentou-se no chão a matutar no assunto e depois levantou-se. A falta de acção sempre lhe fizera comichão. Ao passar pela cozinha pegou o pacote de farinha que a mãe tinha deixado na mesa para fazer o bolo da sobremesa. Denotando um verdadeiro espírito empreendedor fez um carreiro da garagem, passando pela cozinha, indo ao fundo do corredor e saindo pelas portadas do seu quarto. Aí foi buscar a bicicleta, a sua bela BMX, presente do Natal do tio da América e seguiu com muita maestria pelo trilho marcado, deixando um rasto branco de pneus pela casa fora. Estava ainda em plena actividade criativa quando a chave rodou na porta. Primeiro ouviu um algo com um molho de sacos a cair, um feminino "Ai meu Deus!" e, logo a seguir, a voz grossa do pai "Desta vez nem Deus o safa! JOÃO! Onde é que andas, safado!"

segunda-feira, janeiro 24, 2005

lombeiro

língua: português
def.: de lombo+-eiro, adj., s. m., lombar; do lombo ou a ele referente; que tem lomba (preguiça); indolente; diz-se do couro do lombo de certos animais;
imagem: "aquele rapaz, não sei o que fazer dele. É um lombeiro, não se mexe, não mostra iniciativa, arrasta-se, nem para comer tem energia. Embestou, aquilo nem à força de porrada vai. Aninha-se, deixa-se maquiar, não quer saber. Perdeu a energia... O pai já tratou dos papéis, vai com o primo que é da Artilharia, vamos mandá-lo para a tropa. Eles que se desenrasquem que para comer já chegam os que trabalham."

dossier

língua: português
def.: do fr. dossier, s. m., arquivo ou colecção de documentos sobre o mesmo assunto; colecção de documentos que contém informações sobre um acontecimento de particular interesse ou sobre determinada pessoa, que merece especial atenção.
imagem: "tenho aqui o respeitante a esse assunto. O presidente anterior é que fechou esse dossier, ia agora por isto no arquivo. Aqui têm, número 27... Mas olhe lá, isto vem a propósito de quê? Tem de convir que é um pouco estranho, as contas EIH! Não pode levar isso daqui! Onde vai? Óh da guarda!" (Mas quando o homem conseguiu sair detrás do balcão já outro ataque do movimento anti-dossier tinha sido perpetrado! Agora só restava esperar pela costumeira publicação dos documentos no pasquim anarquista da cidade...)

aum

língua: português
def.: s. m., voz de poderes misteriosos, consagrada no bramanismo e adoptada por seitas ocultistas.
imagem: o homem. lívido, emborcou dois de bagaço antes de se encontrar em condições de discursar. Tinha vindo lá de baixo, do moinho, e no caminho tinha metido pelo atalho, à cortada das Várzeas (você sabe, que era daquelas primas que morreram no fogo, o ano passado). Bem, como estava a dizer, o homem jurava que ainda não tinha bebido nada mas eu cá não sei. Disse que primeiro tinha sentido um friozinho na cabeça mas à volta nem uma aragem a puxar as espigas. E depois eram uns murmúrios, uns sons. Primeiro pôs-se a ver de onde é que saía aquilo mas nem vivalma. Ainda pensou que eram uns putos a brincar, mandou uma pedradas à volta mas nem nada, e aquilo (o que quer que fosse) a gemer-lhe pelos ouvidos adentro... Então começou a estugar o passo e a voz, num som gemebundo, (ou vozes, não percebi bem) continuava atrás dele, aquele friozinho, um restolhar... Parecia que ainda as estava a ouvir: "Aum! Aum! Aum...". De certeza que havia ali qualquer coisa de sobrenatural...

sexta-feira, janeiro 21, 2005

trampolineiro

língua: português
def.: adj. e s. m., embusteiro; velhaco; trapaceiro; pop., charlatão.
imagem: "Lembro, lembro. Chegava na carripana, estacionava e ia armar o estaminé um pouco mais longe. Por estas bandas no Verão, perto da praia, e, conforme o tempo tornava, ia descendo para sul. Escolhia sítio, montava a mesa, dessas pequenas, de campismo, e começava a brincar com as cartas, a acenar ilusões de dinheiro fácil aos papalvos. Aquele trampolineiro já tinha muitos anos daquilo, conhecia-os a todos, aos xicos-espertos, os crédulos, os gajos mais violentos, até os gajos da bófia, de uniforme ou à paisana. Era preciso olho e, não poucas vezes abandonou umas notas para se conseguir esgueirar entre a multidão, parecia uma enguia humana. Era um artista da vermelhinha. Acho que morreu de uma naifada, de um fulano mais vingativo, na Nazaré, há coisa de três anos."
recolha feita em 1988, caderno XIII

quinta-feira, janeiro 20, 2005

cacharolete

língua: português
def.: s. m., bebida alcoólica formada pela mistura de diversos licores; fig., misturada, salgalhada.
imagem: a reunião mensal do Clube Desportivo pontuava, no seu momento mais alto, com a entrada da filha do Capitão. Poder-se-ia mesmo dizer que a hora da reunião, realizada pelos membros da direcção no andar de cima da sede, na mesa colocada à frente da balaustrada (que se debruçava sobre o recinto de baile), tinha sido estrategicamente decidida em função desse momento mágico do dia. O vestido de Verão, ondulando com a brisa quente do final do Estio, levava a moça com ele, lambendo-lhe as formas. E, se ao abrir das portas, geralmente uma brisa de fora arrefecia um pouco o ar, aquela entrada incendiava a sala de uma maneira que os ditos senhores, entrados na meia-idade, afanosamente arrefeciam à força dos cacharoletes preparados pelo Teles.

quarta-feira, janeiro 19, 2005

galantear

língua: português
def.: v. tr., tratar com galantaria; cortejar; adornar; ataviar; enfeitar; v. int., dizer galanteios; namorar.
imagem: naquela altura, fazia o seu pé-de-alferes para os lados de Penacova. Ao passar na terra, as moças botavam o olhar à janela, apreciando o porte certo do moço e comentando, para dentro, "Olha que moço tão gido!" e coisas que tais. Tinha a futura sogra embeiçada (o que já diz muito) mas ainda tinha de convencer o pai da rapariga, homem sério e vivido, que não se ia em galenteios. E assim eram tardes de domingo, na sala, a moça de um lado, o rapaz para o outro e, de permeio, olhando com ar severo, o patriarca, a guardar o tesouro. Só quando voltou com colocação certa, carta em papel de lei, assinada pelo Secretário do Ministério, é que a fronha se esbateu e se puderam sentar no mesmo sofá.

domingo, janeiro 16, 2005

gamela

língua: português
def.: do Lat. camella s. f., vaso largo de madeira de fundo redondo ou rectangular; escudela grande; Bot., erva santomense, de fruto leitoso e medicinal; s. m., prov., pacóvio, lorpa. de gamo s. f., pequena corça.
imagem: Depois de saltarem as vedações para ir à fruta, corridos algumas vezes pelos gritos enfurecidos dos donos das quintas, calcorrear os matos e atirar pedradas aos cães dos pastores, mergulhar, se verão fosse, na curva mais larga do rio, perto do açude, à noite, a trupe reunia-se à volta da lareira, olhar lambareiro para a panela de ferro de três pés que aí se aquecia, recipiente sagrado onde repousava o caldo. Para eles, aquilo era sim a verdadeira homilia, de longe ultrapassando em importância as palavras de atenção que o padre Abílio proferia no domingo, a verdadeira força que aquecia o estômago depois de um dia a matar indios ou correr os mares. Quando o verde e espesso sustento enchia a gamela por pouco tempo lá restava, sorvido ruidosamente até encher as entranhas, rapado até ao barro com o pão cozido pelas mulheres da casa.

pio

língua: português
def.: de piar s. m., acto de piar; voz de algumas aves, especialmente a do mocho; Brasil, instrumento ou assobio que imita a voz das aves. de pia s. m., pia ou lagariça de vinho; adj., gír., bêbado; tanque. do Lat. piu, piedoso adj., devoto; caritativo; misericordioso. perder o -: não falar, não responder; dar o triste -: acabar, avariar, chegar ao fim.
imagem: foi das primeiras motorizadas da terra. o rapaz, vaidoso, passava a manhã de domingo a polir-lhe a pintura para à tarde ir desfazer o trabalho em peões no largo da feira, entre grande algazarra dos amigos e das cachopas. um dia, é claro, teve azar, houve (como sempre há) quem até disse-se que aquilo já estava a tardar. uma volta mais lassa e a roda traseira derrapou, levando-o a descrever um meio círculo perfeito até ao interior do fontanário. isto, claro, auxiliado por um pequeno piparote quando a roda dianteira bateu no degrau granítico que orlava o dito e o catapultou lá para dentro. e durante todo o mês, bastava ouvir-se ao longe o rugido de motores que lá lhe vinha a memória do sucedido, punha-se branco e, animada que fosse a conversa, depressa se lhe emudecia o pio com tão triste recordação.

sexta-feira, janeiro 14, 2005

samarra

língua: português
def.: do Ár. sammor, peliça s. f., chimarra; vestuário rústico feito de peles de ovelha ou carneiro, ainda com a lã; peça de vestuário, semelhante a um sobretudo curto, com gola de pele ou todo forrado de pele; espécie de túnica ou batina de eclesiásticos sem mangas; Trás-os-Montes, corcunda; Minho, costas; costado; deprec., padre.
imagem: esculpido pelo céu e a distância, perfilando-se ao correr do monte, o homem apoiava pensativamente o queixo sobre o cajado, forte e esguio madeiro, endurecido ao fogo. vejo-o, distintamente sentado sobre um penedo, como se estivesse à minha frente. não era de palavras, era de acções e movimento. secos e duros, sóbrios. aquela samarra que trazia sobre si, conheci-lha desde sempre e, quando morreu, surpreendi-a num prego, à espera do dono, quieta, como se nada se passasse. e fiquei-me a olhar para ela e a acreditar que tinha razão.

procrastinar

língua: português
def.:
do Lat. procrastinare; v. tr., deixar para o dia de amanhã; adiar; protelar; demorar; espaçar; deferir; v. int., usar de delongas.
imagem: "Um dia, fico-me! Aqueles mangas de alpaca! Um homem sai de casa, de manhã, para ver se não perde o resto do dia e isto, porque eu trabalho veja! Tenho gente a alimentar em casa! Entra-se na repartição e não é ali, mandam para o andar de cima. Depois, "ah, tenho muita pena, o senhor Doutor ainda não chegou" e lá vai o Zé para o banco de espera. Vem o Doutor e "Pois, repare, mas ainda faltam os papeis da escritura, vai ter de ir lá abaixo" e é-se mandado para cima e para baixo, para o lado, aquilo não ata nem desata e um tipo não sai dali. Entretanto faz-se noite e assunto lá fica para o dia seguinte. Sempre a procrastinar, a procrastinar! Mas um dia fico-me, estou farto. Vou lá amanhã e se não me resolvem o assunto já disse ao mais novo que me espera-se com os cães há entrada. Não quero saber! Estão a gozar com um homem ou quê?!" acabou o moscatel e foi para casa, furibundo.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

gabiru

língua: português (ouvido para os lados de Palmela)
def.: adj. e s. m.,velhaco; finório; garoto.
imagem: o peralta descia a avenida de manhã, fatinho de seda, cabelo puxado a brilhantina. estacionava no café do Jorge pelas 11 da manhã, bica ao lado e o jornal desportivo desfraldado. pedia ao graxa que lho trouxesse, gostava de ler enquanto lhe puxava o lustro. um verdadeiro gabiru, parece que fez fortuna no Brasil, nuns negócios escuros em São Paulo. nas palavras do Inspector "digo-lhe, aquilo é só fachada e aposto que mais cedo ou mais tarde o tenho aqui a cantar. canários daqueles, oh oh, tenho-os às dúzias. é só esperar, creia-me."

arraial

língua: português
def.: de reial, forma anterior a real s. m., acampamento de tropas; aglomeração festiva, com música, foguetes, barracas, iluminações, descantes, danças, fogo de artifício, etc. ; romaria; Algarve, aldeola de pescadores; interj., aclamação que se fazia aos reis de Portugal.
imagem: "Bola? BOLA? Mas está a gozar comigo! Estes gajos de agora não valem nada! Quando eu descia ao campo, nos meus 16 anos, para ir ver o Alfredinho jogar, ali a ponta de lança, isso sim, era bola! E aquilo era magnífico, o homem fazia um brilharete. Lembro-me de um jogo, sim senhor, aquilo foi UM JOGO, com todas as letras escarrapachadas. 9-1, a 13 de Novembro de 69, contra as Vendas. Foi suado mas o homem estava imparável. Era de frente, de lado, houve um golo que se desmarcou a meio-campo, correu até à baliza fintando 4 gajos, mas não eram quaisquer gajos, eram quatro GAJOS grandes e bons, olha um deles foi jogar para o Porto no ano a seguir, e marcou. Foi um balázio. Quem viu há-de morrer com tudo aquilo nos olhos. É a bola a sair-lhe do pé e saber-se, de pronto, que não há nada a fazer. Quando ele puxava o pé atrás era dito e certo. Foi um arraial de golos, só ele marcou 5. Era ponta de lança mas não era destes tipos modernos que só vão à frente, parece que estão ali só para lhes porem a carne na boca. Não, ele era ponta de lança mas começava na baliza de cá e arrojava com eles todos até à outra ponta! Se não tivesse sido o ultramar... Morreu na Guiné, mina anti-tanque. Naquela altura sim, havia bola. Agora, bola? O amigo deve estar a mangar comigo..."

terça-feira, janeiro 11, 2005

marrano

língua: português
def.: do Cast. marano; adj. e s. m., nome injurioso que se dava aos Judeus e Mouros, talvez por não comerem carne de porco; imundo; sujo; excomungado; diz-se do gado ruim; prov., porco já crescido.
imagem: a mercearia do Sr. Joaquim Marrano ficava na esquina, virada a norte. lembro o tom escuro do estabelecimento e o homem, já de idade mas pesado, dedos gordos a embalarem coisas em papel pardo. creio que a alcunha (e as alcunhas são terríveis, quando colam é pior que tatuagens) lhe advinha de uma avareza nos trocos e na recusa de participação com o dinheiro para as obras da igreja. claro que tais coisas acabam por não passar impunes. e os putos lá se ajuntavam à porta da loja, cobertos pela impunidade oferecida pela má língua dos pais, a mandar bocas antes e à vinda da escola:

"Ó Marrano!, Ó Marrano!
Cuidado, não te comam o pano!"

e

"Ó Marrano! Ó Marrano!
Chupa o porco até ao tutano!"

domingo, janeiro 09, 2005

cavalhadas

língua: português
def.: s. f. pl., torneios populares e burlescos em que os concorrentes montados em cavalos ou jumentos, procuram com lanças ou canas tocar em objectos suspensos de forma a ganhar prémios.
imagem: há semanas (desde que regressou de Coimbra) que andava empertigado pela aldeia fora com aquele ar de "eu sou o maior cá do sítio". pudera, o paizinho era dono da maior herdade da região, dava de comer a muita gente, não admira que todos se curvassem. mas já chateava. a mim e aos outros. ainda se o vissem trabalhar mas não, era só comer, fatinhos novos e língua para as moças. assim esperámos. no dia da Santa, no recinto da feira, montaram-se os púcaros para as cavalhadas. de certeza que ia aparecer, podia lá resistir a ir mostrar-se no jerico e o hábil que era. mas o ego custou-lhe caro nesse dia... dois cobres passados para o Tonito, um puto endiabrado mas de primeira, e foi vê-lo esgeirar-se, quando o fulano já se tinha posto de pé sobre os estribos, pau em riste para acertar no púcaro, entre o pessoal e espetar um belo e comprido alfinete de ama nas nádegas do burro. a alimária desatou imediatamente aos pinotes e o desgraçado, que tinha atado os pés aos estribos para não cair, foi arrastados pelo recinto e espojado no pó para gaúdio dos presentes. nesse dia ficámos pagos.

sábado, janeiro 08, 2005

bruma

língua: português
def.: do Lat. bruma s. f., nevoeiro; atmosfera escura e chuvosa; fig., sombra; obscuridade; mistério, incerteza.
imagem: na passagem da noite para a manhã, os rostos cansados aquecidos pelo fogo acendido sobre o chão térreo, comiam a sopa em silêncio. à saída, embrulhados nos capotes, cajado na mão, o rapaz ia buscar os cães e o velho abrir a cancela das ovelhas. desapareciam na bruma da manhã, lado a lado, num silêncio cortado apenas pelas palavras dirigidas a uma rês mais travessa.

sexta-feira, janeiro 07, 2005

sopapo

língua: português
def.: de so+papo; s. m., murro debaixo do queixo; bofetão.
imagem: estava a estender o jornal sobre as pernas, bica ao lado quando , na mesa ao lado, começou o teatro. o puto devia ter uns dez anos, aí para o franzino mas com boa voz. uma voz de nos tirar do sério, ligada em automático. queria um chocolate. começou baixinho, "óh pai, quero um chocolate", não te pago chocolate nenhum, está quieto!" e depois, é claro, o crescendo até aos berros "querrrroooo ummm choccooooolllllllllaaaaaaaaatttttttteeeeeeeeeeee !!!!!" e choro. um choro longo, em crescendo, tipo sirene. ameaças? pois, pois, venham elas. e o puto, depois de engrenar... primeiro são os olhares de soslaio e depois é o movimento incómodo das cadeiras, o pequeno comentário... a mãe empurrava o pai "compra-lhe um chocolate para ele parar com o berreiro! está toda a gente a olhar!" o homem lá se levanta, agarrando o puto "vá, que chocolate queres" e é o fim imediato do berreiro, o ar reconhecido e lambuzado no fim. "o que ele precisava era de um bom par de sopapos naquela cara" resmoneou o pai mas a mãe puxou-lhe o casaco "Manel, comporta-te! há pessoas a olhar." eu, pessoalmente, quase que simpatizei com o pai. há alturas em que não há pachorra...

alfaia

língua: português
def.: do Ár. alhaja, coisa necessária; s. f., qualquer utensílio adequado a uma arte ou ofício; arreio; baixela; atavio; enfeite; jóia; paramento de igreja; Alentejo, forquilha com três dentes.
imagem: Filho de gentes pobres, um pouco lerdo mas responsável, foi ficando, primeiro de acólito, depois de sacristão. Era o primeiro a chegar, abrindo as pesadas portas de carvalho, enfileirando pela nave lateral adentro até à sacristia. Aí não se coibia, enquanto preparava a alfaia ("a minha jorna é a salvação das almas", dizia o prior, como quem cultiva prados inteiros de cabeças), de ir bebendo um copito, "para assegurar a qualidade". Aquando da festa da Senhora da Conceição foi descoberto, ò ignomínia, de beiços lambidos, em plena orgia alcóolica e invectivando o retábulo: tinha-lhe morrido a mãe.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

carpideira

língua: português
def.: de carpir; s. f., mulher paga para ir prantear os mortos; mulher que anda sempre a lastimar a sua sorte.
imagem: "estava que já nem a podia ouvir. era o "meu isto, o meu aquilo" e o rol de desgraças de uma vida inteira. diabo da mulher, e não largava, dê-me para isto, dê-me para aquilo e a ladainha que não acabava, uma vozinha fina, de velha, entrecortada a lágrimas de soluços. foi exagerado? eu cá queria saber o que é que é exagerado depois de três horas daquele tratamento. é que não havia maneira de me livrar da mulher. um homem quer trabalhar e assim é impossivel! as tantas não aguentei mais, mandei-lhe um sopapo que a fez andar de roda. parou logo de se carpir. um homem não é de ferro, caramba!"
testemunho dado na Comarca de Trancoso, 1943

terça-feira, janeiro 04, 2005

emigrante

língua: português
def.: adj. 2 gén., que emigra; s. 2 gén., pessoa que emigra, que deixa o seu país para se estabelecer noutro.
imagem: "Esteve na América!" corria à boca pequena, depois da missa, entre as gentes. O visado, de volta à terra depois de largos anos fora, tentava evitar ter de dar contas da vida a toda a gente. É o preço da atração gerada pela novidade (filho da terra vindo de longe) e pelo cheiro a dinheiro. O presidente da Junta já tratava de cravar uns cobres para as obras da freguesia, acenando com a promessa de um nome de rua. E, na distância da memória, aquilo cheirava-lhe a familiar, algo de acolhedor naquela natureza primeva de ser, na imediatez dos desejos, coisa de crianças pequenas. Depois de almoço, baixou sozinho à ponta da eira e respirou fundo o ar frio da serra, que quebrava ao longe o horizonte.

domingo, janeiro 02, 2005

atalho

língua: português
def.: s. m., caminho estreito que encurta a distância entre dois lugares; vereda, carreiro; remate; corte. do Cast. hato, rebanho s. m., prov., rebanho de 50 a 100 cabeças de gado ovelhum.
imagem: o filho-da-mãe meteu-se pelo atalho das três irmãs, para cortar caminho a ver se escapava. queria passar a perna ao pessoal! mas fizemos-lhe uma espera ao poço do gato e só te digo que deu gosto vê-lo, até se sentia o cheiro. ai o sacana pensava que vinha aqui, atirava-se à rapariga, toca de ir ao celeiro e já está? pirava-se o marialva? connosco ninguém brinca, vai a toque de caixa à casa do padre, arrancámo-lo da cama e casaram-se logo ali. e se o gajo não se põe a prumo nós tratamos de o endireitar. omessa, andamos para aqui a brincar ou quê?